A produção da fala humana exige
um controle refinado sobre a vocalização, combinando alta flexibilidade com a
capacidade de reproduzir palavras de forma confiável. Esse processo envolve
várias regiões corticais, cuja atividade frequentemente reflete a estrutura das
palavras pronunciadas. Embora os humanos sejam, até onde sabemos, a única
espécie capaz de comunicação sofistica através de uma linguagem, outras espécies
também apresentam habilidades vocais sofisticadas. Por exemplo, o mandarim (Taeniopygia
guttata), um pássaro capaz de realizar imitações vocais, aprende a cantar
uma música curta e estereotipada, composta por "sílabas". Já os
papagaios, como o periquito-australiano (Melopsittacus undulatus), pequena
espécie de ave psitaciforme de cauda longa, pertencente à família Psittaculidae,
muito conhecida e criada como animal pet no Brasil, podem imitar sons de sua
própria espécie e de outras ao longo da vida.
Os periquitos produzem vocalizações complexas, como cantos de "warble" (sequências de elementos acústicos variáveis, video aqui) que abrangem um espectro sonoro mais rico do que o dos mandarins. Devido ao alto grau de controle flexível observado tanto no canto dos periquitos quanto na fala humana, pesquisadores levantaram a hipótese de que representações neurais compartilhadas possam estar por trás dessas vocalizações.
Para investigar os mecanismos de
produção vocal no periquito, uma equipe de cientistas registrou a atividade do Núcleo
Arcopallial Anterior (AAC, em inglês), região do tálamo, uma estrutura crucial
no cérebro dessas aves, assim como o córtex motor da fala em humanos e o Núcleo Robusto do Arcopallium
(RA, em inglês), outra região do tálamo, em mandarim. O AAC está fortemente
conectado a neurônios motores vocais. Lesões ou estimulação elétrica nessa
região afetam a produção vocal, confirmando seu papel no controle motor.
Os pesquisadores implantaram
eletrodos de alta densidade no AAC de periquitos e registraram a atividade
neural enquanto os pássaros emitiam sons flexíveis (warble) e chamados
estereotipados. Durante a vocalização, os neurônios do AAC aumentaram significativamente
suas taxas de disparo, muitas vezes antecedendo o início e o fim dos elementos
vocais—indicando uma função pré-motora.
Para confirmar que essa atividade
estava ligada à produção vocal e não ao processamento auditivo, os cientistas
realizaram experimentos de playback. Os resultados mostraram que a atividade do
AAC era significativamente maior durante a vocalização do que durante a audição
passiva, reforçando seu papel motor.
Enquanto no mandarim o RA
apresenta um código neural "degenerado" (onde sons acusticamente
similares são produzidos por comandos motores distintos), no periquito o AAC
exibe um padrão diferente: a estrutura vocal está diretamente correlacionada
com a atividade neural subjacente. Isso sugere que o AAC "reutiliza"
os mesmos conjuntos neurais para produzir sons com características acústicas
semelhantes, um mecanismo mais próximo ao observado no córtex humano.
Assim como o córtex
sensório-motor humano organiza os sons da fala com base em características
fonéticas, o AAC dos periquitos parece codificar categorias acústicas
específicas. Os pesquisadores identificaram três tipos principais de elementos
vocais:
- Sons de baixa frequência (energia
espectral abaixo de 700 Hz).
- Elementos harmônicos (estrutura
periódica semelhante a vogais).
- Sons ruidosos (distribuição espectral
ampla, semelhante a consoantes).
Ao analisar a atividade neural,
descobriram que o AAC forma "clusters" distintos no espaço de estado
neural para cada categoria. Além disso, vocalizações intermediárias
("mistas") ocupavam posições entre esses clusters, revelando um gradiente
ordenado de representação acústica.
Outra descoberta crucial foi a
codificação do tom (frequência fundamental) no AAC. Os periquitos exibem um
controle preciso do tom, que está relacionado à tensão na siringe (órgão vocal
das aves). Os cientistas observaram que:
- 51% dos neurônios do AAC eram
sintonizados com tons específicos.
- A atividade neural formava um gradiente organizado,
permitindo prever o tom com alta precisão.
- Essa representação era consistente entre diferentes
tipos de vocalizações (warble e chamados).
Em contraste, o RA do
diamante-de-gould não apresentava uma codificação clara do tom, destacando uma
diferença fundamental entre as espécies.
Implicações para a Evolução da
Fala
Os resultados sugerem que o AAC
do periquito opera de maneira semelhante ao córtex motor humano, permitindo a
recombinação flexível de comandos neurais para gerar novos sons. Essa
descoberta abre caminho para estudos comparativos sobre a evolução do controle
vocal em vertebrados.
Este estudo revela um paralelo fascinante entre os sistemas vocais de periquitos e humanos, destacando o potencial dos papagaios como modelo para entender a evolução da comunicação complexa. A descoberta de um "mapa motor vocal" no cérebro das aves oferece novas perspectivas sobre como o controle neural da fala pode ter surgido ao longo da evolução.
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Comportamento vocal comparativo e atividade neural subjacente. a, Exemplo de sonogramas de um único falante humano extraídos de uma sessão de 10 minutos. Barra de escala, 0,2 s. b, representação de espectrogramas das palavras faladas da sessão usada em a, com todas as instâncias da palavra destacadas em ciano. c,d, Exemplo de sonogramas (c) e (d) de vocalizações de um Mandarim (ZF). Barra de escala, 0,1 s. e,f, Exemplo de sonogramas (e) e (f) de vocalizações de um periquito (BG). Barra de escala, 0,1 s. g, Via de produção vocal nas três espécies, destacando as projeções diretas do prosencéfalo para os neurónios motores vocais do tronco cerebral. Núcleo hipoglosso traqueossiríngeo. h, Registo da população em periquito AAC destacando a atividade de pico durante exemplos de vocalizações e períodos de linha de base não vocais. Barras de escala, 100 ms. Taxas médias de disparo dos neurónios AAC durante a vocalização versus durante a linha de base para um exemplo de ave (i; BG3) e para dados agrupados de todos os periquitos (j, n = 4 aves). Cada círculo representa um neurónio. k,l, Rácios de explosão dos neurónios AAC para uma ave de exemplo (k; BG3) e para dados agrupados de todos os periquitos (l, n = 4 aves). Cada círculo representa um neurónio. m-q, Registos populacionais (m) de RA e quantificação associada de um único zebra finch (n,p; ZF1) e de dados agrupados (o,q, n = 7 aves). Barras de escala, 100 ms. Faixa de freqüência do sonograma: 0,3-4 kHz em a e 0,3-7 kHz nos outros painéis. Em todos os painéis, os valores de P são de testes de Wilcoxon de dois lados. Ver Tabela 1 de dados alargados para os valores P exactos, tamanhos de amostra e informações relacionadas com os testes estatísticos. As ilustrações do tentilhão-zebra nas partes c e m são reproduzidas da ref. 60, Elsevier. Os esquemas do cérebro nas partes h e m são adaptados da ref. 61, Springer Nature Limited. |
Artigo:
Yang, Z., Long, M.A. Convergent vocal representations in parrot and human forebrain motor networks. Nature 640, 427–434 (2025). https://doi.org/10.1038/s41586-025-08695-8

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